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30 anos do MI: Doadores e doadoras que construíram o acervo museológico
por Thiago Haruo Santos
Marci Jean Pereira
Após criação via decreto em 1993, coube ao Museu da Imigração constituir um acervo próprio. Conforme mencionado no texto anterior, projetava-se uma instituição moderna, que tivesse na conexão com as comunidades migrantes os mecanismos de construção de representações das suas culturas materiais. Foi assim que, buscando a perspectiva dos sujeitos dessas histórias, o MI passou a promover, desde 1994, um ano após sua abertura, campanhas ativas de busca de pessoas e entidades para doação de objetos. A figura do (a) “doador (a)” por tanto esteve presente desde os seus primeiros anos de funcionamento do museu.
Naquele primeiro momento, ainda sob o cuidado do Centro Histórico do Imigrante, encontrava-se alguns poucos objetos relacionados à Antiga Hospedaria de Imigrantes do Brás, sendo a maior parte deles itens referidos ao trabalho de escritório, limpeza ou higiene. Esses objetos seriam também incorporados, quando finalmente decidiu-se pelo edifício da antiga Hospedaria como sede da nova instituição cultural.
Desde então, o processo de composição da coleção museológica teve diferentes momentos, hora marcado pela busca ativa da equipe técnica por novos elementos, em outros, incorporando itens fornecidos espontaneamente por pessoas migrantes e seus descendentes. Nos dias de hoje, essa coleção conta com aproximadamente 12 mil itens [1] e, por enquanto, não recebe novas doações.
O texto desta semana busca apresentar um pouco dessa figura tão importante que são os “doadores”, aqueles e aquelas que decidiram por ceder um bem valioso, um objeto carregado de lembranças pessoais e familiares, para construir junto ao MI uma história coletiva das migrações no Brasil.
Caracterização dos doadores e doadoras
Consultando o sistema de gestão de dados sobre a coleção museológica, pudemos encontrar 457 inscrições de pessoas e instituições que constam como doadoras de objetos. Esses doadores podem ser separados em três categorias: 1) Indivíduos; 2) Famílias e; 3) Organizações, como associações e centros de memória.
A categoria de indivíduos é a mais numerosa, compreendendo um total de 445 (97%). Essas pessoas não necessariamente são migrantes, sendo muitas vezes filhos (as) ou netos (as), que mantiveram a posse de determinado objeto desse parente que veio de outra localidade. As doações feitas em nome de famílias é reduzido, constando apenas 3 inscrições desse tipo. Por fim, encontramos também dentre as listas de doação, 9 inscrições de entidades que se denominam como “fraternidade”, “sociedade”, “comunidade” ou “clube”, sempre vinculadas a uma nacionalidade.
Na atualidade, não temos condições de acessar todas as informações oferecidas pelos doadores individuais de maneira agregada, o que dificulta uma análise mais consistente e global sobre o perfil dessas pessoas. Apesar disso, classificando os 445 nomes de doadores individuais do nosso banco de dados, encontramos que 56% são nomes femininos e 44% masculinos. Embora precário, esse dado vai ao encontro de uma impressão compartilhada entre a equipe do MI de que a maior parte das pessoas doadoras são mulheres.
Considerando um universo um pouco mais reduzido, porém, podemos conhecer um pouco mais dessas figuras, o contexto social e histórico o qual se viram atravessadas e construíram suas vivencias. O MI atualmente conta com um acervo de História Oral de 583 entrevistas, registros feitos com pessoas migrantes e seus descendentes sobre suas experiências de mobilidade. Dentre essas entrevistas, podemos encontrar 38 feitas com pessoas que doaram objetos para o acervo da coleção museológica, ou seja, conseguimos acessar um pouco mais do perfil e história de vida de 8% do número total de doadores individuais da coleção museológica.
Sabendo da limitação desses dados, observamos que dentre esses 38 entrevistados encontramos pessoas nascidas em um período que vai de 1902 a 1950. Nesse universo de indivíduos doadores que gravaram entrevista, a grande maioria nasceu entre 1920 e 1940 (24 pessoas), seguido das pessoas que nasceram entre as décadas de 1900 e 1920 (13 pessoas). Esses dados aproximativos apontam para doações feitas por pessoas que viveram a infância no começo do século e/ou foram crianças e jovens em meados do século XX e adultas no final desse mesmo período.
Ao observar o local de origem e grupo social ao qual se identificam, constatamos que 33 delas são migrantes internacionais, com localidade de origem em territórios atualmente compreendidos em países como Portugal, Hungria, Romênia, Alemanha, China, Espanha, França, Rússia, Argentina, Armênia, República Tcheca, Eslováquia, Estônia, Itália, Croácia, Japão, Lituânia, Polônia, Síria e Ucrânia; 5 pessoas nascidas no Brasil, quatro filhas de migrantes internacionais e uma pessoa migrante interna vinda do Estado da Bahia.
Outro dado com o qual podemos trabalhar é o ano de chegada dessas pessoas. As informações sobre esses doadores individuais dão conta de que essas pessoas chegaram ao Brasil ou à São Paulo (no caso da única migrante interna) entre 1911 e 1977. Há uma concentração de chegadas na década de 1920 e outra nas décadas de 1940 e 1950. Essas informações apontam também para a variedade de contextos históricos vivenciados por essas pessoas, tanto já residindo em território brasileiro (ou paulista), assim como nos seus locais de origem.
Ao trabalhar com as informações sobre as pessoas que doaram objetos para a coleção museológica do MI, e que foram entrevistadas, pudemos traçar um perfil que, apesar de estar longe de alcançar qualquer pretensão de representatividade em relação ao universo total de doadores, se próxima bastante da abordagem que a instituição desenvolveu ao longo dessas últimas três décadas em relação ao fenômeno das migrações.
Encontramos uma pluralidade de experiências no que diz respeito ao tempo, pessoas que nasceram no início do século até outras que migraram já na última quadra do século passado, quando o próprio fenômeno migratório já havia se transformado completamente no cenário nacional. Em relação à origem e identificação por grupo social, observamos uma variação, mas também uma predominância na experiência de migrantes europeus e seus descendentes. Esse perfil, de uma maneira geral, reflete as intencionalidades construídas desde a criação do MI, conforme apontado na postagem introdutória desta série.
Enquanto os dados apresentados até aqui oferecem uma base para caracterizar uma parte da figura dos doadores, as entrevistas feitas com essas pessoas trazem contextos, nuances e perspectivas que podem elucidar significados subjacentes e complexidades muitas vezes não capturadas apenas por números. A seguir, apresentaremos dois casos que demostram como os significados atribuídos ao ato de doar um objeto para o acervo do MI variam, exemplificando os desafios colocados diante dessa coleção.
Apresentando dois casos
Jaime Corominas Valls nasceu em Tiana, província de Barcelona, Espanha, em 1925, migrando para o Brasil em 1953. Situada a 20 quilômetros de Barcelona, Tiana vivia da agricultura, especialmente da cultura da uva. Na entrevista gravada em 1997, fala da mudança da família para Barcelona, onde montaram uma padaria, das memórias e das marcas deixadas pela Guerra Civil Espanhola. Fala do autoritarismo e do longo período franquista, e como isso fez com que muitas pessoas tivessem que deixar o território espanhol.
Jaime é uma figura impar dentre os doadores individuais pela quantidade e variedade de itens cedidos. Fez doações em dois momentos distintos, em 1998 e em 1999, de 47 objetos dos mais distintos tipos como uma miniatura de cadeira andaluza, retratos familiares, equipamento de trabalho odontológico, miniatura de chapéu, tampa em formato de cabeça de touro, crucifixo e livros. A primeira análise indica a constituição de um acervo próprio do que ele pensava representar seu país de origem, a Espanha. Essa interpretação é corroborada pelo registro de história oral, em que o migrante se demora em descrever os principais grupos que constituem a Espanha, salientando as características específicas e a história da Catalunha. As doações que fez, por tanto, são bastante coerentes com a sua participação em algumas entidades da comunidade espanhola em São Paulo, como a Hispano Brasileira, a Rosália de Castro e o Clube Catalão.
Dentre os objetos doados por Jaime, consta uma Caixa de ferramentas, com várias ferramentas utilizadas por seu pai:
Então, meu pai veio aqui no ano de 52, com uma caixa de ferramentas que eu doei para o Museu da Imigração, que não é completa, infelizmente não encontrei tudo que ele trouxe, mas algumas coisas que tem lá ... realmente eu queria doar mais coisas, mas o pouco que tem, era dele, que ele trouxe de lá. Ele trabalhava como mestre de obras na Catalunha ... já com aquelas ferramentas. Mestre de obras na Catalunha era um homem que baseado numa planta, ser mestre de obras é uma profissão da Idade Média na Catalunha, já da Idade Média, porque já tinha grêmios naquela época que eram mestres de obras.
Neste trecho, encontramos um elemento bastante comum em relatos de visitantes do MI que é o vínculo de uma história individual ou familiar com um contexto histórico mais amplo. A caixa doada, por tanto, traça a conexão entre a o vivido por seu pai e à idade média, a constituição das profissões e ofícios dentre os povos do continente europeu.
Então, ele não era um pedreiro que coloca tijolos, ele era um mestre de obras que era capaz de fazer qualquer coisa no ramo de construção. Esse era meu pai. Um homem que trabalhou desde os 10 anos e que eu realmente admirava muito e admiro muito (...) como um trabalhador sempre, sempre.
E ele veio aqui, com aquela caixa dele, coitado. Coitado no sentido que teve que trazer aquela caixa, mas essas eram realmente as ferramentas com as quais ele começou.
Já nesse excerto, o entrevistado mostra como a caixa se relaciona a uma admiração que ele tem pela figura do trabalhador, categoria que, segundo ele próprio dá embasamento à própria admiração criada sobre a figura paterna. Nessa construção, além disso, a caixa pontua um início simbólico de trajetória da própria família, uma trajetória interpretada por meio do processo de ascensão social. Esse processo de marcar a diferença do seu pai em relação a um “pedreiro” também mostra o lugar da caixa de ferramentas na construção da identidade do pai e por extensão do próprio entrevistado.
Analisando a entrevista de Jaime Corominas Valls, podemos identificar algumas ideias importantes para o processo que constituiu o acervo museológico do MI. Primeiro, um vínculo importante com a origem do objeto. A caixa de ferramentas, assim como alguns dos outros objetos vieram da Espanha e essa origem carrega um significado, que apesar de não ser a regra geral, acrescenta uma força simbólica ao objeto doado. No caso em tela, essa origem remete a um contexto histórico mais amplo, que significa o objeto e a experiência migratória das pessoas envolvidas na narrativa. Por fim, muitas vezes os objetos doados remetem a uma ideia de “inicio”, de um momento em que posteriormente a própria pessoa e seus descendentes podem voltar para construir interpretações sobre as trajetórias de vida percorridas, atravessando gerações.
O caso apresentado até aqui, apesar de dialogar com muitas ideias comumente atribuídas ao acervo do MI, é praticamente uma exceção. Nem sempre está a nossa disposição a possibilidade de traçar uma relação coerente entre a trajetória de vida contada por uma pessoa e os significados em torno dos objetos doados. Ou quando podemos relacionar trajetórias de vidas e objetos doados, esses vínculos não são tão diretos ou auto evidentes, como se verá no segundo caso.
Ana Rita de Souza nasceu em Bela Flor, Bahia, em 1906. Migrou em 1914, seu pai era delegado e a mãe dona de casa. Vieram para o estado de São Paulo, fixando-se em Ururaí, onde seu pai trabalhou com comércio e depois foi político. Conta que o primeiro automóvel da cidade pertencia a seu pai. Casada aos 17 anos, com filho de fazendeiros de café, teve cinco filhos e após a morte do marido na Revolução de 1932, foi trabalhar como empregada doméstica em São Paulo. Quando entrevistada em 2000, aos 94 anos, orgulhava-se de ter criado os filhos sozinha, ter casa própria, ser tataravó e ter a coroa mais alta como mãe-de-santo.
Ana doou para o museu um Xale em formato triangular em lã nas tonalidades creme na parte superior e branca na parte inferior confeccionado em tricô.
A entrevistada relata sua dura experiência de trabalhar como empregada doméstica em diversas residências, atravessada por repetidos episódios de exploração extrema, humilhação e deterioração da saúde mental e física dela mesma e de seus familiares.
Um ponto importante de inflexão na entrevista ocorre quando ela deixa de tratar do seu passado enquanto trabalhadora doméstica e passa a contar como se aproximou da Umbanda, desenvolvendo sua espiritualidade dentro dessa religião.
MUSEU - A senhora acha que a sua vida melhorou depois que a senhora passou a frequentar a umbanda, a senhora sentiu uma mudança na sua vida?
ANA - Senti porque eu achei obrigação para me fazer, todos os dias que era Sexta-feira de ir no centro eu ia, eu não perdia um dia. Daqui eu ia na Lapa, às 7 horas da manhã eu saia daqui de casa e ia na Lapa, começava os trabalhos às 8 horas da manhã e terminava ao meio dia. Fui todo esse tempo e me senti mais segura, mas assim mesmo a missa que morre uma pessoa que é a missa na igreja eu vou, o padre Damião que hoje é falecido sabia que eu era espírita, aceitou que eu batizasse uma neta, sabendo que eu era espírita. Eu aceitei de ir na igreja porque o meu neto não é espírita, não podia batizar a menina na sessão espírita. Eu fui e o padre olhava muito pra mim ele sabia que eu era espírita e me aceitou dentro da igreja na hora do batismo da menina, então acho que Deus faz muita coisa boa pra mim.
Na entrevista, não identificamos nenhuma menção ao objeto em si, nem muito menos às experiências ou informações relacionadas a diferentes esferas da vida como profissão e religião que indiquem o significado atribuído ao xale doado. As únicas menções que encontramos de objetos, porém, estão sempre relacionadas a experiências e eventos religiosos, como este trecho em que conta do primeiro encontro com a religião. Ana Rita havia escutado na rádio sobre o lugar, sentia que estava vivendo um “transtorno na vida” e sentiu vontade de conhecer. Ao chegar no local, a atividade prevista para o dia já havia terminado, mas esse encontro foi fundamental para o inicio da sua trajetória espiritual:
(...)Me atendeu na porta, falou que já tinha encerrado, mas pra mim escrever pra ele, que ele pelos meus dados ele escrevia pra mim o que eu devia fazer. Ai eu escrevi, daí oito dias veio a carta e eu tenho a carta até hoje.
Não temos acesso ao conteúdo da carta, mas a entrevistada disse que a mensagem era para ela buscar a religião e assim o fez. O importante para nossa discussão aqui é o significado atribuído ao documento e os problemas colocados por ele à nossa discussão. Para Ana Rita, a carta pareceu um recado importante, de contato com a própria religião. Ao mesmo tempo, podemos compreender o porquê de um objeto de foro tão íntimo, de conexão tão pessoal com a sua espiritualidade e os elementos que a compõe, não ser cedido ao museu.
Em outro momento, a doadora do xale faz menção a outros objetos, mas agora indicando a sua vontade de ser enterrada com eles:
(...) a Dina é que sabe quanto tempo eu fiquei (frequentou o terreiro de Umbanda na Lapa). Eu sei que eu fiquei até 80 e poucos (anos) porque essa semana nós tava conversando, e vou contar uma coisa que eu falo (...) que pra você eu tô fazendo uma confissão: até minha roupa de umbanda, a primeira roupa, quer dizer que tinha outras roupas que fazia trabalho e tinha aquela roupa do dia, mas que a gente tinha que fazer apresentação, mais, como diz, mais chique não posso falar, mais trabalhada, mas é roupa simples, só que a saia comprida, a blusa comprida, mangas compridas. Eu guardei pra eu ser enterrada com a minha roupa que eu vestia na umbanda como chefe de umbanda.
A vestimenta nesse trecho aparece na entrevista como um bem simbólico importante para o lugar na hierarquia que alcançou dentro da religião. Assim como no excerto da entrevista acima, podemos encontrar em outros doadores individuais esse ato de guardar um objeto que recebeu significação ao longo do seu uso, dos eventos durante a vida que atravessou. Neste último caso, porém, como “chefe da umbanda”, essas vestimentas deveriam cumprir a função delas, de acompanhar a sua pessoa até depois da sua morte física.
Voltamos assim, a partir de refletir sobre esses trechos de entrevista, a pergunta principal: quais significados foram atribuídos por Ana Rita e considerados pela equipe técnica do museu ao efetivar a doação. O xale teria algum vínculo com a sua experiencia religiosa? Esteve com Rita durante todo o seu percurso enquanto mulher migrante no Estado de São Paulo? Por enquanto essas questões continuam em aberto, mas demostram bem os desafios colocados para à equipe do MI.
Neste artigo, pudemos ver como ao longo desses últimos 30 anos, o acervo do MI tem sido um lugar de construção de relações com as pessoas e comunidades de migrantes que se aproximam da instituição e buscam colaborar para esse projeto de construção coletiva de uma memória sobre o fenômeno humano das migrações. Convivendo com as histórias, objetos doados e algumas pistas, seguiremos contribuindo para a reflexão sobre as migrações no Brasil, no passado e no presente.
[1] Política do Acervo do Museu da Imigração do Estado de São Paulo.