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A Fotografia como Memória: Sentimentos, Afetos e Desencontros
Bianca Alves - Analista de Pesquisa Jr.
A fotografia é, sem dúvida, uma das ferramentas mais procuradas quando falamos de memória. Seja para reviver um momento guardado na lembrança, seja para tentar imaginar o que não foi vivido, ela preserva fragmentos de algo que jamais será o mesmo de antes [1]. Segundo o pesquisador Etienne Samain:
O aparente da vida registrado na imagem fotográfica pode assim, de quando em quando, deixar de ser unicamente a referência e reassumir a sua condição anterior de existência. O princípio de uma viagem no tempo em que a história particular de cada um é restaurada e revivida na solidão da mente dos sentimentos [2].
Ao refletir sobre essa ideia, percebemos que a busca por uma lembrança muitas vezes se manifesta na procura por retratos de família e registros visuais da história de um grupo. Esse gesto carrega um senso de nostalgia, como se fosse uma tentativa de resgatar um momento preservado no tempo.
Para compreender melhor esse desejo de reencontro por meio das imagens, é necessário considerar a noção de memória e sua importância para o indivíduo. A memória pode ser entendida como um complexo sistema de registros, que envolve tanto informações armazenadas internamente quanto referências externas. Juntas, essas camadas constroem o repertório cultural, social e afetivo de cada sujeito [3].
Assim, torna-se evidente que a necessidade de recordação ocupa um lugar central na constituição do ser. Ela preserva vínculos, atualiza afetos e recupera fragmentos de vivências que, embora passadas, continuam a reverberar no presente. Trata-se, portanto, de um dos bens mais preciosos que se pode ter — não apenas como lembrança, mas como possibilidade de existência e continuidade [3].
Entre as várias formas de manifestação dessa capacidade humana, o autor João Carlos Tedesco destaca, em Nas cercanias da memória, o conceito de memória familiar. A expressão é pertinente à pesquisa de materiais iconográficos de antepassados. Além de refletir uma identificação com costumes, culturas e modos de vida, essa busca carrega também um componente afetivo e ancestral. . Se fundamenta nos vínculos afetivos familiares construídos ao longo da vida, na tentativa de recuperar aqueles que, por alguma razão, se perderam com o tempo, como forma de resistência e preservação da identidade [3]. Como afirma Tedesco:
É por isso que a memória familiar, enquanto quadro, dá garantia de uma memória de identidade, de valor grupal, de uma lógica genealógica, de um tempo vivido em grupo, de imagem de uma afetividade particular e normativa, de uma propriedade psíquica, simbólica e moral inerente ao grupo [3].
Observar um retrato antigocarrega um significado profundo. Mesmo sem saber quem são as pessoas retratadas, somos tocados por expressões, gestos e olhares que transmitem histórias silenciosas. A fotografia tem esse poder: estabelecer conexões com indivíduos que talvez nunca tenham sido conhecidos, mas que, de alguma forma, fazem parte de nossa história.
Por isso, é comum que durante visitas ao Museu da Imigração — ou mesmo por e-mails e redes sociais — surja uma pergunta recorrente: É possível encontrar fotos da minha família no Acervo Digital?
Infelizmente, é raro que o acervo iconográfico do Museu da Imigração contenha registros específicos de famílias ou indivíduos. A maior parte das imagens disponíveis refere-se à Hospedaria de Imigrantes, a grupos, aos profissionais que ali trabalhavam, a fotos da cidade e, em menor quantidade, a retratos individuais, que geralmente não possuem identificação ou outros detalhes. Já as imagens com legendas costumam referir-se aos retratados de maneira coletiva, e não individualizada, o que dificulta a localização de registros pessoais de quem passou pelo edifício durante seus deslocamentos [4].
Um dos principais motivos para a ausência de registros fotográficos individuais no acervo está relacionado à escala de funcionamento da Hospedaria de Imigrantes do Brás, que podia receber até 3 mil pessoas por dia. Diante desse volume expressivo de recém-chegados, seria inviável registrar fotograficamente todos os indivíduos e suas famílias. Além disso, a dinâmica do local — voltada à recepção, triagem e encaminhamento dos imigrantes — exigia rapidez nos procedimentos. Assim, mesmo quando os passaportes familiares traziam fotografias dos titulares, essas imagens não eram retidas pela hospedaria, o que inviabilizava sua preservação. [4]
Além disso, é fundamental considerar o contexto da fotografia no Brasil, especialmente seu custo e público-alvo. Durante muito tempo, ela foi uma prática artística cara, acessível a poucos, com uma função predominantemente documental e de registro. A partir da década de 1850, com a chegada da fotografia ao país, ela passou a se consolidar como uma ferramenta importante de representação, inicialmente voltada para as camadas sociais mais privilegiadas [5].
Outro aspecto relevante, que dialoga com os pontos anteriormente abordados, diz respeito à forma como os retratos fotográficos eram produzidos. Antes da popularização das câmeras digitais, o processo fotográfico era totalmente analógico, exigindo tempo para revelação e representando um custo elevado — o que o tornava inacessível para grande parte da população [6]. Em outras palavras, fotografar todos os imigrantes que passavam pela Hospedaria exigiria não apenas tempo, mas também recursos financeiros significativos, o que estava distante da realidade da maioria daqueles que por ali transitavam.
Por fim, é de extrema importância ressaltar que o direito de ser fotografado não era apenas influenciado pelo recorte financeiro, mas também por questões sociais e raciais. Infelizmente, para além dos indivíduos que passaram pela Hospedaria, muitos núcleos familiares e pessoas foram apagados da história e da lembrança de seus descendentes devido a essas desigualdades [7]. Reconhecer essa ferida histórica é um passo essencial para refletirmos sobre formas mais equitativas de preservação e representação da memória coletiva.
Como propõe Luciara Ribeiro em seu ensaio As Minhas Fotografias, o acesso a registros iconográficos de família varia conforme os contextos históricos e os direitos reservados a cada indivíduo ao longo da construção social e de suas rupturas. Em suas palavras: “o corpo eternizado no tempo é, além de um privilégio, um poder”.
Referências bibliográficas
[1] KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro. Fotografia e memória. Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, João Pessoa, v. 16, n. 47, p. 75-81, 2017.
[2] SAMAIN, Etienne. O fotográfico. São Paulo: Hucitec, 1998.
[3] TEDESCO, João Carlos. Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração. Universidade de Passo Fundo, Núcleo de Estudos Histórico-Linguísticos, 2004.
[4] PAIVA, Odair da Cruz; MOURA, Soraya. Hospedaria de Imigrantes de São Paulo. São Paulo: Paz e Terra, 2008. (Coleção São Paulo no Bolso).
[5] CHIARELLI, Tadeu. História da arte/história da fotografia no Brasil-século XIX: algumas considerações. ARS (São Paulo), v. 3, p. 78-87, 2005.
[6] ZÜGE, Gilberto Gilmar; TITON, Fábio Luis. Diferença de custo entre a fotografia digital e analógica. 2006.
[7] RIBEIRO, Luciara. As Minhas Fotografias. Revista ZUM, São Paulo, 26 out. 2021. Disponível em: https://revistazum.com.br/ensaios/as-minhas-fotografias/. Acesso em: 10 de abril de 2025.