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Arte migrante: 11 artistas e 11 obras em 2022 - Um balanço
Por Thiago Haruo Santos
Durante 2022, o projeto "Arte migrante: 11 artistas e 11 obras em 22" apresentou migrantes que se destacaram no passado ou na atualidade no campo das artes e da produção cultural. Ao longo de dez meses, compartilhamos nas redes sociais, e aqui no Blog do CPPR, um artista e uma obra para cada período (entre fevereiro e dezembro). Com isso, buscamos tanto relembrar figuras migrantes que trouxeram contribuições importantes para essa área, quanto convidar o público a acompanhar a produção artística de migrantes internacionais atuantes no Brasil.
Conforme apresentado na introdução da série, uma das razões da Semana de Arte Moderna de 1922, e o Modernismo de uma maneira geral, ainda ser objeto recorrente de debates, é porque o movimento pôde ecoar diversas questões colocadas naquele momento a uma sociedade que já olhava com uma certa distância histórica para a sua condição de colônia e adentrava um período de intensa urbanização e industrialização sob o novo regime republicano.
Desse pensamento, levantamos a possibilidade de olhar para as obras de arte como indutoras de reflexões sobre quem somos nós e quais rumos queremos seguir. Para isso, seria interessante nos atentarmos para a capacidade dessas obras de capturar a realidade e oferecer a reflexão.
Em fevereiro, o artista que inaugurou a temática foi o Paulo Chavonga, com a obra Zinga mbandi. Trata-se de um retrato da "primeira mulher a governar, no século 17, o atual território de Angola. Rainha Nzinga ou Ginga, como é popularmente conhecida, ganhou reputação por conseguir combinar habilidades políticas e diplomáticas e comandar exércitos configurados no reino da Matamba e Ndongo na luta anticolonial".
Em março, apresentamos Candido Portinari, trazendo para discussão a sua obra Retirantes. A pintura foi avaliada a partir de três eixos: representação do ambiente, representação das crianças e representação das expressões faciais. Dos tons terrosos, da atmosfera fúnebre e das feições assustadas de adultos e crianças, pudemos observar a força expressiva do artista ao retratar questões ainda muito presentes em nossa realidade: pessoas em busca de melhores condições econômicas e sociais e o problema da seca.
Abril foi o mês de Emília Estrada, que nos trouxe a obra Palestina. De uma pesquisa em torno dos diversos símbolos que envolvem o significante "Palestina", a artista nos guia por meio de diferentes imagens e histórias. O questionamento sobre a "inexistência" do território palestino no Google Earth serve para ela desfiar múltiplas possibilidades de reflexão sobre a base ideológica da representação dos territórios e o questionamento sobre o artefato mapa na sustentação de narrativas hegemônicas sobre a realidade.
Junho foi a vez de apresentar a pintura Naufrágio do Sírio de Benedicto Calixto. Na obra, está representado o naufrágio da embarcação que partiu de Gênova, na Itália, em 4 de agosto de 1906. Com destino a Buenos Aires, a maioria dos passageiros desse navio era de origem italiana, mas existiam também migrantes de outras nacionalidades, como gregos, sírios, libaneses e brasileiros. Na representação, fica evidenciado o papel dos clérigos naquela sociedade retratada por Calixto, além do aspecto de desespero e tragicidade envolvidos nesses episódios vinculados ao migrar.
Nicolás Llano foi apresentado em junho. Na sua obra Marginália, podemos encontrar um mergulho que o artista fez entre as marcas gráficas e textuais feitas nos livros durante sua leitura, as "marginálias", nos livros da biblioteca da Casa do Povo. Llano chama atenção para o diálogo intergeracional e inter-cultural estabelecido por meio dessas marginalias, que atravessaram diferentes interesses, períodos históricos e momentos das migrações da comunidade judaica em São Paulo.
Julho foi a vez de Noè Raimondo Bordignon e sua obra Per L'America (Emigranti). Retratando o tema da migração a partir da aldeia de origem, o artista se diferencia de iniciativas similares, que traziam como cenário o espaço do porto. Representando uma família numerosa, o profissional, originário de Treviso e que, provavelmente, viu muitas dessas partidas em sua terra natal, retrata uma dessas cenas de "expulsão" de famílias pobres rumo a diferentes destinos migratórios. É a partir da imagem do drama familiar, ambientado no local de origem, que podemos traçar nossas reflexões sobre as migrações de uma maneira geral.
Em agosto, Lasar Segall foi selecionado, junto à sua obra Navio de Emigrantes. Desde a sua própria posição como um artista no exílio no contexto da Segunda Guerra Mundial, Segall traz, nessa produção, a imagem do convés de um navio ocupado por diversas pessoas e famílias migrantes, remetendo a sentimentos como angústia e preocupação. Aos olhos de Mario de Andrade, por exemplo, essa cena vinculada ao fenômeno migratório tem o poder de transcender a realidade retratada propriamente dita. Segundo o modernista, "sem nunca abandonar o essencial expressivo no qual suavemente agora transparece a mesquinhez da condição humana na terra, ele pôs ao lado da dor a alegria. Não como um contraste, porém, como uma fusão"[1].
Antônio Rocco foi retratado pela série em setembro. Em Os emigrantes, está representada uma família de migrantes pobres, em um cenário que sugere o ambiente do cais. A empatia do espectador é acionada na construção dos personagens, feitos em cores terrosas e com expressões de consignação. Segundo Alexander Gaiotto-Mioshi, "os imigrantes manifestam sentimentos diversos, entre os que prevalecem a preocupação e o desamparo, a serenidade e a paciência, a admiração com o novo e a esperança"[2].
Em outubro, o coletivo Cholitas da Babilônia foi apresentado, assim como a intervenção artística Yo estoy aqui – feita na 34ª Bienal de São Paulo. Segundo as próprias artistas, na "ação os corpos se envolviam com a sua ancestralidade, pois com a pollera, vestimenta usada pelas cholitas mulheres indígenas aymaras e quéchuas, retomaram um pouco da sua identidade, que, na verdade, é uma construção constante. Além disso, a maioria delas estavam se vestindo pela primeira vez de cholitas, assim valorizando tal identidade perdida ao longo do tempo pelo próprio racismo estrutural que existe no país de origem (Bolívia) e no Brasil".
Tomie Ohtake foi a artista apresentada em novembro. O monumento de sua autoria, feito em frente ao Centro Cultural São Paulo, no contexto da celebração aos 80 anos da chegada do primeiro grupo oficial de imigrantes japoneses no Brasil, foi a obra escolhida para o artigo. Representando as quatro gerações de Nikkeis[3] no Brasil, a produção trabalha as ondas curvas, trazendo uma visão sobre a composição e a interação das diferentes gerações nas migrações.
Por fim, em dezembro, J. Pavel Herrera foi o artista escolhido para fechar a série de publicações. Por meio de algumas obras, 7 noites 365 dias (2017), A distância entre dois pontos (2016-2021) e Ponto de fuga III (2018), entramos em contato com algumas das propostas de Herrera, levantando questões vinculadas às fronteiras, ao controle migratório e às distâncias geográficas e culturais. Segundo o próprio autor, "os processos migratórios devem ser entendidos como eventos traumáticos e é importante sempre apontar o dedo nas múltiplas causas entorno deles".
A série, então, mostra quão vasta é produção de artistas que são migrantes e de obras de arte voltadas ao tema das migrações. Dessa maneira, a simples enumeração de cada uma delas mostra que uma conclusão geral a respeito da intersecção entre arte e migração demandaria um nível de abstração que, em muitas ocasiões, esvaziaria os conteúdos e os efeitos dos discursos construídos por essas obras.
Apesar disso, fica evidenciada nas postagens, dentre outras questões, a potência contida no fenômeno das migrações para gerar dispositivos de reflexão sobre a condição humana. O Museu da Imigração seguirá trabalhando para documentar e referenciar essas produções, buscando oferecer ao público essas múltiplas perspectivas que enriquecem ainda mais nossa compreensão sobre os fenômenos migratórios.
Foto da chamada: Instalação Eu Vim de Lá, realizada em parceria com o jornal Folha de S. Paulo e com os artistas Anaís Escalona, Shambuyi Wetu e Zé Vicente.
Referências
[1] Andrade, 1925 apud MILLER, Ábílio Á. et al. Lasar Segall: antologia de textos nacionais sobre a obra e o artista. Rio de Janeiro: Funarte/Instituto Nacional de Artes Plásticas, 1982. p. 23-24.
[2] GAIOTTO-MIYOSHI, Alexander. "Iconografía de la migración: el caso de la acogida brasileña al cuadro Os emigrantes (1910) de Antonio Rocco". Revista Colombiana de Pensamiento Estético e História del Arte, nos. 8-9 (julio 2018, enero 2019): pg. 71. Disponível em: https://revistas.unal.edu.co/index.php/estetica/article/view/92195/77331.
[3] Termo pelo qual são conhecidos os descendentes de japoneses.