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Baiane
Marci Jean Pereira Santana - Estagiarie de pesquisa no Museu da Imigração do Estado de São Paulo.
“Eu tô brindando e assistindo
Um homofóbico xenófobo apanhando de um gay nordestino.”
(Baco Exu do Blues, 2017)
O meu lócus de enunciação vem de um ponto geográfico, subjetivo e temporal que se conectam, nesse ponto específico foi quando parte da minha subjetividade veio à tona com mais força, passou a ser marcada, adjetivada. O meu lócus de enunciação tem como referência as experiências que vivi em Arandu, cidade do interior de São Paulo, entre os anos de 2015 a 2018, e dizem respeito a reflexões que partem e se conectam com a parte da minha identidade que responde ao adjetivo baiano [1]. Para esse exercício reflexivo, algumas perguntas são úteis. Como esta identidade é formada? Que resistências e violências perpassam essa experiência? E quais são as consequências deste processo?
Sair do interior da Bahia para morar no interior de São Paulo além de conectar esses espaços geográficos, possibilita uma nova pessoa, que não é mais somente um corpo adolescente afeminado dito masculino descobrindo sua identidade e expressão de gênero, mas que passa a ser um corpo que descobre precisar lidar com o fato de que nasceu em um determinado lugar, e que por ter nascido neste determinado lugar, precisa lidar com mais uma opressão [2]: a xenofobia [3].
A ideia de que o deslocamento de um lugar para o outro é capaz de tornar alguém algo não é nova, e podemos encontrá-la na teorização de que, no início da escravização, no momento que se cruza o Atlântico temos certas condições raciais de exploração criadas [4]. Então, neste sentido, podemos apreender que um deslocamento possui força de transformação, que um corpo que se desloca - forçadamente ou não - corre o risco de ser apreendido de outra forma no seu ambiente receptor. Um exemplo mais recente deste fenômeno é a estereotipização da diversidade de povos árabes/mulçumanos no Brasil como turcos [5]. E no meu caso, o meu deslocamento permitiu que eu me tornasse algo para além do que já era, fez surgir o filho do baiano, o sobrinho do baiano, o primo do baiano, e ser eu próprio, baiano [6].
A partir do meu deslocamento da Bahia para São Paulo, vivendo especificamente entre 2015 e 2018 em Arandu, pude ouvir palavras e ver feições carregadas de xingamentos, desvalorizações e imputações, que traziam a todo momento a lembrança do meu local de nascimento para marcá-la em mim. E essa marca dizia algo, tinha como princípio motor o seu objetivo de valoração, e esse valor consistia em diferenciar quem era nordestino de quem não era. A marca do local de nascimento dizia que aqueles que não são nordestinos possuiam fatores que os positivam: seja sua linguagem - porque baiano é burro; seja sua habilidade manual - porque baiano não sabe fazer as coisas; seja a sua posição no mercado de trabalho - porque aquele emprego mal pago, não registrado em carteira de trabalho, pode ser reservado a aquele outro corpo de fora. E no meu caso, essa valoração positiva de uns em detrimento de outros para que seja criada ou mantida determinada situação social causada pela xenofobia, não está só, ela se complexifica com outros arranjos sociais. Para entendermos isto é preciso nos atentar ao conceito de interseccionalidade:
A interseccionalidade, ao reconhecer que a desigualdade social raramente é causada por um único fator, adiciona camadas de complexidade aos entendimentos a respeito da desigualdade social. Usar a interseccionalidade como ferramenta analítica vai muito além de ver a desigualdade social através de lentes exclusivas de raça ou classe; em vez disso, entende-se a desigualdade social através das interações entre as várias categorias de poder. [7]
Esse entendimento de interações entre os fatores que causam desigualdades sociais pode ser desenhado quando:
Vendo a partir do lugar estrutural de uma mulher indígena das Américas, o que então surgiu [com a colonização das Américas] foi um sistema-mundo mais complexo do que aquele que é retratado pelos paradigmas da economia política e pela análise do sistema-mundo. Às Américas chegou o homem heterossexual/branco/patriarcal/cristão/militar/capitalista/europeu, com as suas várias hierarquias globais enredadas e coexistentes no espaço e no tempo [...]. [8]
Essa possibilidade de se pensar conexões entre diferentes tipos de preconceitos e opressões é cara a construção deste relato em razão de ser preciso entender os sujeitos a partir de todos os seus marcadores de forma complexa, e também porque, marca o modo de interação que possuía diante a população jovem xenófoba aranduense - grupo que mantinha maior contato por conta da minha vivência escolar. Assim, ser uma pessoa do interior da Bahia, experimentando e presenciando o racismo recreativo, além de ser um corpo LGBTQIAPN+, tinha me ensinado a estratégia da educação, ferramenta que se tornou o único escudo que conseguia e que poderia utilizar em segurança diante de atitudes preconceituosas. Se, ainda em solo nordestino, buscavam, principalmente, me diminuir pelos meus trejeitos afeminados ou entonação vocal, eu me afirmava e possuía como tática, a minha valorização pela via do estudo. Tática essa, já utilizada por outras pessoas que carregam imbricamentos identitários, como demonstrado abaixo:
Aprendi também que eu precisava focar nos estudos, porque, caso contrário, deixaria de existir qualquer expectativa de um futuro melhor para mim, para ela [mãe] e para minha irmã. Imagine que eu, criança, já sabia que o meu presente não era nenhum presente. Imagine a distância que era correr contra o tempo, avançada, evoluída. Hoje, falando do presente, sei dizer o porquê que eu projetava tanto um futuro na perspectiva da ascensão social: eu era uma bicha preta, pobre, afeminada e nordestina. [9]
Mas a partir do meu deslocamento para solo sudestino, há uma mudança dessa ferramenta de sobrevivência quando passo a enfrentar também a xenofobia em Arandu: essa estratégia passa a ser propositalmente escancarada. O rearranjo das identidades causado pelo deslocamento causa o ímpeto de defesa e esta é feita pela via da educação - mais uma vez.
Assim, ser este corpo interseccionado e estar em Arandu, foi um período de muita vulnerabilidade, mas também de construção de resistências. As violências diretas e indiretas, que iam de agressões físicas no ambiente escolar ao não reconhecimento ou desvalorização das identidades que me formam, foram também combustível para as resistências, que iam do micro ao macro, seja nos laços de amizades aos debates extensos nas redes sociais. Este jogo entre violência e resistência pode ser visto em publicações nas minhas próprias redes sociais, reanalisadas agora, de Fevereiro de 2015 - mês de chegada em São Paulo, a Dezembro de 2015. São publicações na sua esmagadora maioria de orientação progressista, tocando temas como: feminismo, religião, gênero e sexualidade, educação, raça, política e pertencimento regional. Além de relatos de vivências pessoais sensíveis. Para época essa vivência online, na minha experiência pessoal, marcava uma posição política que era transpassada para a realidade através de amizades, ações escolares e fortalecimento da importância da educação e do campo de discussão e argumentação que ela possibilitava. O que consequentemente expandiu aquela ferramenta de sobrevivência construída anos atrás, complexificando-a em arma, escudo e utopia.
No final de 2018, acreditando ainda nessa ferramenta denominada educação e no seu poder de transformação e ascensão social, dou um adeus a Arandu em direção à capital paulista. Esse adeus e os caminhos que marcam esses cincos anos até o agora, foram e ainda são influenciados grandemente a partir do mundo da educação, seja pela vivência acadêmica ou pelas discussões e trocas presenciais ou online.
Hoje, a partir de um outro lugar, a educação possibilita um entendimento mais centrado do meu corpo no mundo enquanto uma pessoa não-binárie nordestina negra pobre, e permite entender também as potências e os amargos que carregam estas identidades interseccionadas. Um lugar que me permite entender os impactos de se pensar em si primeiro no campo da sexualidade e gênero e não a partir do seu pertencimento social [10] e que “Para me inventar, eu tinha, antes de tudo, de me dissociar.” [idem]. Sendo assim, um lugar que possibilita a compreensão da utilização das minhas ferramentas de sobrevivência como responsáveis por certos afastamentos na tentativa de se tornar um certo eu projetado, mas também, como responsáveis pelo meu próprio retorno [11]. Mas um lugar, que hoje, utilizando de ferramentas ainda do mundo da educação e da teoria acadêmica, como a interseccionalidade, torna esses imbricamentos e retornos possíveis. E por fim, um lugar que não mais permite que a xenofobia me atinja de pronto, pois o hoje me permite perguntar: o que seria da selva de pedras sem nós migrantes? Sem aqueles que foram transformados em mercadoria e nós seus descendentes? Sem nós pessoas LGBTQIAPN+?
Foto de chamada: Roça entre o município de Maracujá (Serrolândia - BA) e o remanescente de quilombo Alto do Capim (Quixabeira - BA). 2020/ Acervo do autor.
Referências
[1] Optei por utilizar o pronome masculino de forma geral para deixar o texto com menos explicações das escolhas linguísticas e políticas, porém cabe evidenciar os esforços da comunidade LGBTQIAPN+ e movimentos feministas na propositura de uma reformulação na atual linguagem considerada como a única universal e válida. Porém deixo o título do texto como provocação desta questão.
[2] Para Collins (2019): “Opressão: situação injusta em que, sistematicamente e por um longo período, um grupo nega a outro o acesso aos recursos da sociedade. Raça, gênero, classe, sexualidade, nação, idade e etnia constituem importantes formas de opressão.” Ver mais em: Collins, Patricia Hill. Pensamento feminista negro: conhecimento, consciência e a política do empoderamento. Tradução: Jamille Pinheiro Dias. São Paulo: Boitempo, 2019.
[3] O conceito de xenofobia pode encontrar entraves ao ser utilizado para migração interna, uma vez que é utilizado para se pensar a migração internacional. A escolha por utilizar este termo vai de encontro a teorização defendida por Ramos (2021) de que a xenofobia é uma prática discriminatória geradora de estereótipos contra aquele que vem de outro lugar - considerado “pior” pelo indivíduo ou grupo receptor. Em relação a esse pior, encontramos também em Ramos (2021, p. 25) que: “Em várias leituras sobre a discriminação/xenofobia/preconceito contra migrantes nordestinos, as regiões sul e sudeste são sempre mencionadas como sinônimo de branquitude, modernidade e riqueza em contraposição à mestiçagem, o atraso e a pobreza do Nordeste.” Para uma discussão exploratória entre raça, migração e xenofobia ver Faustino, Deivison M..; Oliveira, Leila M. de. Xeno-racismo ou xenofobia racializada? Problematizando a hospitalidade seletiva aos estrangeiros no Brasil. REMHU: Revista Interdisciplinar da Mobilidade Humana, v. 29, n. 63, p. 193–210, set. 2021.
Para ver mais sobre a teorização sobre xenofobia, ver: Ramos, Valéria. B. C. Xenofobia contra nordestinos e nortistas nas escolas: a História como propositora de vivência intercultural. 2021. 128 f. Dissertação (Mestrado em Ensino de História) - Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2021.
[4] Mbembe, Achille. Crítica da razão negra. Tradução: Sebastião Nascimento. São Paulo: N-1 Edições, 2018.
[5] Porto, César H. de Queiroz. Alteridades nas representações de Árabes e muçulmanos na teledramaturgia nacional. Projeto História: Revista Do Programa De Estudos Pós-Graduados De História, v. 61, p. 320-349, 2018.
[6] Em Arandu também há um grande contingente de pessoas advindas do Maranhão, mas como este texto se propõe ser de cunho mais pessoal e de uma pessoa de origem baiana, optou-se por não abordar este outro grupo.
[7] Collins, Patricia H.; Bilge, Sirma. Interseccionalidade. Tradução: Rane Souza. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2020.
[8] Grosfoguel, Ramón. Para descolonizar os estudos de economia política e os estudos pós-coloniais: Transmodernidade, pensamento de fronteira e colonialidade global. Revista Crítica de Ciências Sociais 80 | 2008 - Epistemologias do Sul.
[9] Nascimento, Kika S. do. Memória como lugar de origem. In: Insubmissão intelectual de mulheres negras. Oliveira, Dayse Nascimento de; Barbosa, Manoela dos Santos; Moreira, Nubia Regina (orgs). 1.ed. Salvador, BA: Devires; Rosa Luxemburgo, 2021. ePDF.
[10] Eribon, Didier. Retorno a Reims. Belo Horizonte: Âyiné, 2020.
[11] A capa deste texto é uma foto da entrada da casa que morei uma parte da minha infância na Bahia, e ela foi tirada na primeira e única vez que voltei à Bahia desde 2015.