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O controle migratório nas fronteiras do Brasil: sinais do autoritarismo em nossa porta
A mobilidade humana é um fenômeno geográfico e social que sofreu grandes impactos com o surgimento da Covid-19, classificada como pandemia pela Organização Mundial de Saúde (OMS) desde março de 2020. A fim de conter a propagação do vírus, os Estados passaram a restringir a imigração em seus territórios, baseando-se em critérios de nacionalidade, procedência, estabelecendo procedimentos sanitários, de testagem ou quarentena[1]. Não foi diferente no caso brasileiro, que já soma, pelo menos, 28 Portarias dos Ministérios do Governo Federal.
A conjuntura pandêmica influiu nos processos migratórios relacionados ao território brasileiro, em especial à região transfronteiriça com a Bolívia e Venezuela. A crise sanitária tem servido de argumento para a mudança na forma como o governo federal trata o acolhimento humanitário de imigrantes no Norte do país. É certo que as medidas de restrição são necessárias, mas o que se pôde verificar também foram disposições questionáveis em relação ao controle epidemiológico (mediante instrumentos infralegais), que retomam pontos da polêmica portaria 666/2019, do Ministério da Justiça. Após anos de avanço na legislação migratória, o Brasil tem sinalizado uma ameaça de regressão no tema, especialmente no discurso político.
Para além de um tema que se limite às migrações, o controle de fronteiras, como tem sido executado, denota um caráter autoritário de retomada de disposições da legislação do regime militar, estabelecendo, por exemplo, deportações sumárias, que são inexistentes no sistema legal brasileiro e contrariam princípios de toque da Constituição Federal. Ou seja, o Poder Executivo Federal tem legislado por conta própria, contrariando o ordenamento jurídico, as leis aprovadas pelo Parlamento. Isso representa um risco para a efetividade dos direitos humanos e para a própria democracia.
Apesar da contrariedade ao sistema legal ser evidente, as portarias continuavam sendo executadas. Agindo dessa forma, a atual gestão federal tem se revelado um governo burocrático, ou que adota um procedimentalismo burocrático. Historicamente, governar por meio da burocracia (ao lado de outros elementos) foi uma característica dos governos despóticos.
A estrita e irracional observação da burocracia foi um dos pilares do totalitarismo do século XX, segundo Arendt[2]. Para a autora, governar pela burocracia é ignorar a lei e governar por decretos, "[...] o que significa que a força, que no governo constitucional apenas faz cumprir a lei, se torna a fonte direta de toda legislação"[2]. A burocracia é um processo de organização e racionalização das instituições, que não deve se confundir com a política: não se deve governar por meio dela.
Na burocracia ocorre um predomínio da técnica, da lógica, dos valores da segurança e da ordem pela qual tudo é regulado, em detrimento das condutas criativas e de risco que permeiam o mundo da política. Essa racionalidade extrema, que leva a uma prisão da modernidade, faz parte do poder burocrático, e coloca em risco os direitos individuais. Para um governo que assume a política de opressão, o governo pela burocracia é mais eficiente, já que um decreto ignora os estágios legais, e impele o raciocínio político da população. Em oposição ao governo das boas leis, que é o governo da sabedoria, o governo por decretos é governo da esperteza[2]. O governo por meio de decretos foi uma das principais características do governo nazista, e o procedimentalismo burocrático foi estratégia para levar à irracionalidade social: a banalidade do mal.
O fim dos modelos burocráticos de Estado Totalitário descritos por Arendt – Nazista e Comunista – de forma alguma significou o fim da burocracia como forma ou instrumento de exercício do poder político na modernidade. O adensamento do modo de produção capitalista na sociedade, com as revoluções tecnológicas do século XX, resultou, mesmo dentro do Estado democrático, no surgimento da tecnocracia, em que o fortalecimento do Poder Executivo se dá pelo deslocamento das instâncias decisórias do Parlamento para órgãos técnicos[3][4].
Conforme apontado pelas primeiras análises de sua gestão, o governo de Jair Bolsonaro caracteriza-se pelo aparelhamento ideológico do Estado[5] e por um projeto econômico justificado, por vezes, pela animosidade ao funcionalismo público[6]. Constata-se a extinção de dezenas de instâncias de caráter decisório, colegiado e técnico, no âmbito da Administração Pública, verticalizando as estruturas de decisão [5], o que levou a burocracia da atual gestão a atuar por meio de normas como decretos e portarias. Tais instrumentos não passam pelo crivo do Poder Legislativo, como ocorre com as Medidas Provisórias, o que diminui o controle sobre seus atos.
Considerando o primeiro ano de seu governo, Bolsonaro foi o presidente que mais editou decretos: 537 só em 2019. Cinco desses foram alvo de (dezesseis) ações perante o Supremo Tribunal Federal (STF): sobre cortes na educação, extinção dos conselhos, escolha de reitores das universidades, que alterava o Fundo Nacional do Meio Ambiente, além do decreto de armas[7]. O que se conclui é que o chefe do Poder Executivo Federal tem tentado legislar por meio de decretos, excedendo o poder regulamentar do cargo. Assim, os ministros têm seguido o mesmo caminho, tentando legislar (em simetria), por meio de portarias ministeriais.
Em março de 2020, o fechamento de fronteiras foi uma medida adotada por grande parte dos países, a fim de limitar a circulação de pessoas e a propagação do vírus. No Brasil, o Congresso editou a lei 13.979/2020, a Lei de Quarentena, em fevereiro de 2020. Regrando o fechamento de fronteiras, os Ministérios da Justiça, da Saúde e da Casa Civil editaram, em 17 de março de 2020, a Portaria 120/2020. Foi a primeira medida excepcional e temporária da restrição de entrada no Brasil por imigrantes da Venezuela (e apenas desse país), conforme recomendação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
A normativa seria seguida de dezenas de outras portarias. A portaria conjunta 1/2020, de 29/07/2020 foi a última editada até a proposição de Ação Civil Pública (ACP) (Autos 1004501-35.2020.4.01.3000, da 3ª Vara Federal Cível e Criminal da SJAC - TRF 1ª Região) pela Defensoria Pública da União, pelo Ministério Público Federal, pela Associação Direitos Humanos em Rede (Conectas Direitos Humanos) e pela Cáritas Arquidiocesana de São Paulo, contra tais atos normativos da União (ainda sobrevindo outras portarias posteriores).
A ação foi proposta tendo em vista um dispositivo que se repete em todas as portarias em questão: estabelece sanções de responsabilização civil, administrativa e penal, repatriação ou deportação imediata e inabilitação de pedido de refúgio dos imigrantes que descumprirem as restrições da(s) portaria(s). Com tais sanções, verifica-se que não somente o ingresso de imigrantes no país foi restringido, mas que se abriu uma possibilidade de retirar compulsoriamente aqueles que entrarem no país de forma irregular, o que contraria disposições da Lei 13.445/17.
Os relatos de deportações sumárias (ou de tentativas) são vários, tanto na ação proposta quanto em reportagens midiáticas. Para além do contexto fático de casos individuais que têm se vislumbrado e recorrentemente solucionados no Poder Judiciário, dada sua gravidade e desrespeito à legislação vigente, é necessária a reflexão sobre as implicações que a edição de tais portarias podem gerar no cenário social, jurídico e político do Brasil. A Lei de Migração de 2017 se alinha aos preceitos constitucionais e de tratados internacionais de direitos humanos. Possibilitadas pelo contexto excepcional de pandemia, as portarias em comento resgatam o discurso nacionalista do Estatuto do Estrangeiro, da ditadura militar, tal qual a tentativa da Portaria 666/2019.
Assim, traça-se o paralelo entre o governo burocrático analisado por Arendt, no século XX, e a gestão federal brasileira atual, sinalizando para o autoritarismo. O legislar por decretos (ou portarias) e o nacionalismo exacerbado, que tem ganhado força na extrema direita em nível global, são características que merecem atenção. O reforço de fronteiras e a constante busca de um inimigo a quem culpar (notadamente, os imigrantes) são estratégias comuns a estes grupos. O fechamento da fronteira com a Venezuela, sendo que aquele país tinha menos casos de Covid-19 que o Brasil, e a abertura das vias aéreas, em contrapartida, já sinaliza que os atos do Executivo são movidos por viés ideológico, não por atenção à saúde pública.
Pela mora em relação à negociação de vacinas, desestímulo de uso de máscaras e do distanciamento social, e promoção de uso de medicamento como tratamento precoce que não tem o mínimo respaldo médico-científico, não parece que exista um interesse na saúde pública por parte do governo federal. O fechamento de fronteiras no Brasil é muito mais um projeto político autoritário de contenção migratória do que de prevenção sanitária. E as portarias interministeriais ora analisadas são um instrumento burocrático, que não respeita o bloco de constitucionalidade e as normas infralegais; é a burocracia sendo usada pelo poder político para subverter o sistema legal.
O pânico no enfrentamento da "crise migratória", mencionado por Bauman em 2016, é uma arma política junto ao discurso de "securitização" da sociedade. Esses problemas são complexos e controversos: "neles, o imperativo categórico da moral entra em confronto direto com o medo do 'grande desconhecido' simbolizado pelas massas de estranhos à nossa porta"[8]. Pelo contexto que se tem desvelado no Brasil, o único medo justificado é o do crescimento do autoritarismo, que tem não só fechado nossas portas, mas atacado os fundamentos constitucionais sobre os quais se ergue a nossa democracia.
Elisa Marina Fonseca é Mestre em Ciências Sociais Aplicadas pela Universidade Estadual de Ponta Grossa/PR. Também é graduada em Direito e especialista em Direito e Processo Administrativo pela mesma Universidade.
Mirna de Lima Medeiros é Mestre e Doutora em Administração de Organizações pela Universidade de São Paulo. Também é professora Adjunta do Curso de Turismo e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Estadual de Ponta Grossa/PR.
João Irineu de Resende Miranda é Mestre e Doutor em Direito Internacional pela Universidade de São Paulo, especialista em MBA Internacional em Gestão Estratégica da Inovação pela PUC - SENAI - Universidade Tecnológica de Compiégne (França). Também é professor do Curso de Direito e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Estadual de Ponta Grossa/PR.
Os artigos publicados na série Mobilidade Humana e Coronavírus não traduzem necessariamente a opinião do Museu da Imigração do Estado de São Paulo. A disponibilização de textos autorais faz parte do nosso comprometimento com a abertura ao debate e a construção de diálogos referentes ao fenômeno migratório na contemporaneidade.
Referências
[1] CHAVES, João (2020), "A atuação da Defensoria Pública da União em favor de imigrantes durante a pandemia de covid-19: um relato de campo", in ZUBEN, Catarina von, et al (orgs.), Migrações internacionais e a pandemia de covid-19. Campinas, NEPO/Unicamp e Observatório das Migrações de São Paulo.
[2] ARENDT, Hannah (1989), Origens do Totalitarismo. Tradução Roberto Raposo. São Paulo, Companhia das Letras.
[3] JIMÉNEZ, Alfredo Ramos (2014), La construcción del orden democrático: Burocracia, Tecnocracia y meritocracia, Mérida, Centro de Investigaciones de Política Comparada.
[4] PERISSINOTO, Renato (2014), "O conceito de Estado Desenvolvimentista e sua utilidade para os casos brasileiro e argentino". Revista de Sociologia e Política, v. 22, n. 52, p. 59-75.
[5] LYNCH, Christian (2020) "A utopia reacionária do governo Bolsonaro (2018-2020)". Insigh Inteligência [Consult. 24.03.2021]. Disponível em: https://inteligencia.insightnet.com.br/a-utopia-reacionaria-do-governo-bolsonaro-2018-2020/.
[6] PORTAL G1 (2020), "Paulo Guedes compara servidores públicos com parasitas" [Consult. 24.03.2021]. Disponível em: g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2020/02/07/paulo-guedes-compara-servidores-publicos-com-parasitas.ghtml.
[7] OLIVEIRA, Mariana; VIVAS, Fernanda; D'AGOSTINO, Rosanne (2020), "Bolsonaro é presidente com mais decretos e MPs questionados no STF no primeiro ano de mandato". TV Globo e G1 [Consult. 15-02-2021]. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/03/01/bolsonaro-e-presidente-com-mais-decretos-e-mps-questionados-no-stf-no-primeiro-ano-de-mandato.ghtml.
[8] BAUMAN, Zygmut Bauman (2017), Estranhos à nossa porta. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar.
Crédito foto da chamada: Pablo Mardones. | Conta com tarja preta, no canto inferior esquerdo, escrito OCUPAÇÃO "REVISTA SIMBIÓTICA" em branco.
A ocupação "Revista Simbiótica" é uma iniciativa que surgiu da parceria entre Museu da Imigração e o periódico homônimo da série, da Universidade Federal do Espirito Santo (Ufes), para a divulgação das reflexões e contribuições do dossiê "A pandemia e a crise internacional das mobilidades humanas", publicado em agosto de 2021. Dando continuidade à proposta desenvolvida na série "Mobilidade Humana e Coronavírus", seguiremos debatendo e refletindo sobre os impactos da pandemia para as migrações e demais mobilidades.