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Pandemia na era das "crises migratórias"
Ocupação Revista Simbiótica
A partir de hoje, damos início à ocupação "Revista Simbiótica", que irá divulgar as reflexões e contribuições do dossiê "A pandemia e a crise internacional das mobilidades humanas", publicado em agosto de 2021, no periódico homônimo à ação aqui no site, da Universidade Federal do Espirito Santo (Ufes). A seleção de textos, que pode ser encontrada na íntegra aqui, trouxe análises voltadas à compreensão dos impactos da crise sanitária provocada pela pandemia da COVID-19 nos processos migratórios internacionais e intranacionais, bem como nas circulações transfronteiriças.
Enquanto organizadora do dossiê, a série de divulgação, iniciada hoje no Blog do CPPR, é uma nova oportunidade de fazer chegar, a mais lugares e leitores, as ricas reflexões trazidas por autores de diversas localidades do Brasil e do nosso continente. Sendo as publicações na ocupação, incluindo essa introdução, uma maneira de apresentar os principais temas tratados na revista, encorajamos fortemente o acesso ao link acima, aproveitando a versão completa do material.
Pandemia na era das "crises migratórias"
Ainda nos primeiros meses de pandemia, naquele longínquo abril de 2020, uma de nós chamava a atenção, neste mesmo espaço, para dois fatores: por um lado, as transformações que se avizinhavam com novo cenário pandêmico e, por outro, para o novo ciclo, aberto pela geopolítica global no qual operariam tais tensionamentos:
"A crise desencadeada pela pandemia do Covid-19 tem consequências transformadoras para a vida em todo planeta. Enfrentamos circunstâncias que desafiam não somente a organização da circulação econômica, mas também a geopolítica dos Estados-nação e o papel que as áreas de fronteira ocupam nesta geopolítica. As respostas emergenciais à crise estão dando origem a decisões extremas, que desconcertam aos representantes de todos os espectros políticos (desde os mais conservadores, aos mais progressistas). Uma destas decisões é, justamente, o fechamento das fronteiras internacionais, adotado por centenas de países de todo o mundo.
A partir dos atentados de Nova York de 2001, observamos uma ruptura das lógicas da globalização. Esta ruptura se intensificou particularmente desde 2015. Passamos, assim, de uma "era das migrações", a uma "era da crise migratória". Nesta "nova era", o imperativo de re-fronteirização do mundo converteu-se numa bandeira central de líderes de países tão dissimilares como Estados Unidos, Brasil e Inglaterra. Curioso como possa parecer, estes discursos geram um antagonismo simbólico entre "os cidadãos de bem" de vários contextos nacionais, e os/as "migrantes" (representados como uma identidade negativa, não convidada, indesejada)"[1].
Contudo, seria um reducionismo conceber a globalização somente a partir dessa faceta circulatória, porque configurou-se tensamente entre os desequilíbrios e solavancos de dois interesses contraditórios – embora simbióticos – dos países centrais do capitalismo. Por um lado, estes países, pertencentes ao que denominamos aqui "Norte Global", buscavam uma crescente capitalização das suas economias, por meio da abertura "sem fronteiras" de mercados, de uma nova divisão internacional do trabalho e da implementação internacionalizada de regimes de ultra-exploração laboral[2]. E, por outro, buscavam também o "fechamento" das suas fronteiras aos imigrantes provenientes da periferia capitalista, do "Sul Global", que, como definiu Grimson[3], constituem a massa humana que não foi plenamente convidada aos benefícios da "festa da globalização".
A crise sanitária atravessada pela população coloca o dedo nessa espécie de "ferida globalizatória" (e "civilizatória"), removendo o caráter explosivo que a contradição entre "abrir" e "fechar" e entre "mobilidade" e "imobilidade" representa para a polarização Norte-Sul do planeta. Os Estados se encontram, atualmente, impelidos a questionar, regular, controlar ou impedir os fluxos que atravessam suas fronteiras internacionais; a intervir na circulação de mercadorias, nas migrações e nas dinâmicas de trânsito transfronteiriço. Em vários lugares do mundo, esse processo vem se vinculando perigosamente ao discurso que criminaliza as migrações e mobilidades humanas, aprofundando as práticas restritivas que, como sabemos, recaem predominantemente sobre as pessoas e países da periferia capitalista[4].
No entanto, seria equivocado assumir que esse processo constitui uma novidade; trata-se da hegemonia global de um discurso promovido insistentemente pelos países capitalistas centrais (particularmente pelos Estados Unidos)[5]. Tal hegemonia respalda-se no uso do ódio como "recurso moral"[6], impugnando o direito dos migrantes internacionais de chegar aos países do Norte Global ou de pertencer a eles em igualdade de condições (jurídicas, sociais, econômicas, políticas, identitárias) com relação à população autóctone[7].
Essa "tendência" a criminalizar as migrações, a construir esta fronteira entre "nós" e os "demais" radicalizou-se a partir de 2008, com a crise econômica que afetou fortemente os países do Norte Global, evidenciando as fraturas do modelo neoliberal de gestão de seus Estados. Na América do Sul, os impactos dessa crise começam a ser sentidos mais tarde, em 2013. Em 2015, representantes políticos de vários países da região – como Chile, Argentina, Peru, Colômbia e Brasil – começaram a utilizar esses discursos de ódio contra os (as) imigrantes, mas vinculando-os às retóricas racistas, xenofóbicas e misóginas próprias, conectadas com as mitologias e mitomanias nacionais (de média e larga duração histórica)[8][9].
Esse novo regime em construção parece reinterpretar e associar as mobilidades e o controle de fronteiras às questões de biossegurança. As migrações internacionais e internas em cada país não serão as mesmas depois dessa crise. A reorganização das mobilidades terá um impacto político e econômico que ainda não logramos vislumbrar por completo. As melhores projeções apontam a uma recessão global que durará, pelo menos, uma década[10]. Porém, como se sabe, essas circunstâncias afetam as populações de forma diferenciada, dependendo dos fatores de vulnerabilidade aos quais diferentes pessoas ou grupos estão expostos.
Os quatro artigos reunidos no dossiê "A pandemia e a crise internacional das mobilidades humanas", e do qual se baseiam as contribuições que virão nas próximas semanas, indagam especificamente sobre esses desenlaces nos países da América do Sul, observando as transformações nas práticas sociais, nos padrões psicossociais e nas representações acerca das mobilidades humanas. Abordam, ainda, as articulações entre as migrações e as desigualdades (sociais, econômicas, políticas e identitárias), questionando se o novo regime de controle das migrações, que vemos forjar-se nesta pandemia, será mais restritivo, e sua relação com as políticas sanitárias. Finalmente, também se indaga se algumas das perspectivas que associam as migrações aos direitos humanos (atacadas desde 2015, com giro global a extrema-direita) voltam a ter incidência nos discursos públicos ou se, ao contrário, acentua-se a sua retirada política. A partir desses eixos analíticos, os escritos aproximam as pessoas das formas como as comunidades migrantes estão vivenciando o contexto pandêmico. Ao fazê-lo, abrem a oportunidade de imaginar, a partir das ciências sociais, os processos de mobilidade humana num futuro pós-pandêmico.
Esperamos que esses potentes trabalhos possam iniciar uma reflexão transcendente sobre a reorganização dos regimes migratório e fronteiriços, que ganhará maior relevância política na medida que avançamos ao final deste período de restrições pandêmicas. Em tempos de desinformação, ódio e medo, a função das ciências sociais é construir visões humanitárias e embasadas em conhecimento científico que possam respaldar as políticas e ações dos Estados.
Menara Lube Guizardi é cientista social, pós-graduada em Ciências Humanas e Desenvolvimento Regional pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES, Brasil), mestra em Estudos Latinoamericanos e doutora em Antropologia Social, ambos pela Universidad Autónoma de Madrid (UAM, Espanha). Atualmente, é pesquisadora do Instituto de Altos Estudios Sociales de la Universidad Nacional de San Martin (Buenos Aires, Argentina) e da Universidad de Tarapacá (Arica, Chile).
Maria Cristina Dadalto é jornalista, mestra em Administração pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG-Brasil), doutora em Ciências Sociais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ-Brasil) e pós-doutora na Università Ca'Foscari di Venezia (Itália). Atualmente, é professora do Departamento de Ciências Sociais e dos Programas de Ciências Sociais e de História da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES-Brasil).
Os artigos publicados na série Mobilidade Humana e Coronavírus não traduzem necessariamente a opinião do Museu da Imigração do Estado de São Paulo. A disponibilização de textos autorais faz parte do nosso comprometimento com a abertura ao debate e a construção de diálogos referentes ao fenômeno migratório na contemporaneidade.
Referências
[1] GUIZARDI, Menara (2020), "Coronavírus, mulheres e fronteiras: reflexões latino-americanas", Blog do Centro de Preservação, Pesquisa e Referência (CPPR) do Museu da Imigração do Estado de São Paulo. São Paulo. Disponível em: http://museudaimigracao.org.br/blog/migracoes-em-debate/mobilidade-humana-e-coronavirus-coronavirus-mulheres-e-fronteiras-reflexoes-latino-americanas.
[2] SMITH, John (2016), Imperialism in the Twenty-First Century: Globalization, Super-Exploitation, and Capitalism’s Final Crisis. New York, New York University Press.
[3] GRIMSON, Alejandro (2021), "The Waste of Globalization’s Party", in C. S. Ramírez, S. M. Falcón, J. Poblete, S. C. McKay e F. A. Schaeffer (Comps.), Precarity and Belonging. Ithaca, Rutgers University Press, pp. 67-83.
[4] SLACK, Jeremy; HEYMANN, Josiah (2020), "Asylum and Mass Detention at the U.S.-Mexico Border during COVID-19", Journal of Latin American Geography, v. 20, n. 10, pp. 1-6 [Consult. 12-07-2021]. Disponível em: https://muse.jhu.edu/article/760917/pdf.
[5] GRIMSON, Alejandro (2018), "Social anthropology and transnational studies in Latin America: introduction", Etnográfica, v. 22, n. 1, pp. 99-108 [Consult. 12-07-2021]. Disponível em: https://journals.openedition.org/etnografica/5167.
[6] NOEL, Gabriel (2011), "Guardianes del Paraíso. Génesis y Genealogía de una Identidad Colectiva en Mar de las Pampas, Provincia de Buenos Aires". Revista del Museo de Antropología, v. 4, pp. 211-226 [Consult. 12-07-2021]. Disponível em: https://revistas.unc.edu.ar/index.php/antropologia/article/view/5487.
[7] BAUMAN, Zygmunt (2016), Extraños llamando a la puerta. Barcelona, Paidós.
[8] CANELO, Brenda; GAVAZZO, Natalia; NEJAMKIS, Lucila (2021), "The Back and Forth Between National Security and Human Rights: Migration Policies in Argentina Under the Cambiemos Administration (2015–2019)", in M. Guizardi (Ed.), The Migration Crisis in the American Southern Cone: Hate Speech and Its Social Consequences. New York, Springer, pp.97-126.
[9] GUIZARDI, Menara; STEFONI, Carolina; GONZÁLVEZ, Herminia; MARDONES, Pablo (2021), "Transnational Heterogeneities. Migration Configurations in the South American Cone (1970-2020)", in M. Guizardi (Ed.), The Migration Crisis in the American Southern Cone: Hate Speech and Its Social Consequences. New York, Springer, pp.21-52.
[10] WELLS, Chad; SAH, Pratha; MOGHADAS, Seyed; PANDEY, Abhishek; SHOUKAT, Affan, WANG; Yahing; WANG, Zheng; MEYERS, Lauren; SINGER, Burton; GALVANI, Alison (2020), "Impact of international travel and border control measures on the global spread of the novel 2019 coronavirus outbreak", Proceedings of the National Academy of Sciences, v. 117, n. 13, pp. 7504-7509 [Consult. 12-07-2021]. Disponível em: https://www.pnas.org/content/117/13/7504.
Crédito foto da chamada: Pablo Mardones. | Conta com tarja preta, no canto inferior esquerdo, escrito OCUPAÇÃO "REVISTA SIMBIÓTICA" em branco.
A ocupação "Revista Simbiótica" é uma iniciativa que surgiu da parceria entre Museu da Imigração e o periódico homônimo da série, da Universidade Federal do Espirito Santo (Ufes), para a divulgação das reflexões e contribuições do dossiê "A pandemia e a crise internacional das mobilidades humanas", publicado em agosto de 2021. Dando continuidade à proposta desenvolvida na série "Mobilidade Humana e Coronavírus", seguiremos debatendo e refletindo sobre os impactos da pandemia para as migrações e demais mobilidades.