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Possibilidades educativas em museus de história: Transbordando temática e acervo
Discutimos, no texto anterior, sobre a importância da construção de parcerias entre educadores que atuam dentro e fora dos museus, com o intuito de garantir que seu espaço seja apropriado e reconhecido como potente ferramenta pedagógica. Na perspectiva apresentada, o museu não é mera ilustração do aprendizado, mas um ator dinâmico no ensino e pode ser ativado de diferentes maneiras, apresentando propostas interdisciplinares e discussões transversais à sua temática.
É comum iniciar a construção de práticas educativas em instituições culturais a partir do seu principal tema e do estudo de seu acervo. Costuma-se elaborar discussões partindo dos assuntos expostos e, a depender da instituição, a coleção pode ser usufruída de maneira sensorial e lúdica. Uma vez iniciado esse trabalho, os educadores são lançados em uma jornada, em busca de ativar o espaço com propostas pedagógicas que não só abordam, mas também que transbordam temática e acervo, colaborando com a construção de um museu sem muros, sem limitações e que se apresente como um centro vivo[1] para a sociedade.
Onde está o museu?
Muitos visitantes, mesmo já dentro do espaço dos museus, costumam questionar os orientadores de público e demais funcionários sobre "onde está o museu?", quando, na verdade, o que buscam são as salas expositivas. A dúvida, que parece confusa à primeira vista, nos revela uma importante reflexão sobre como esses locais são apresentados ao público.
Discutimos nos museus a importância destes lugares também serem reconhecidos como espaços dinâmicos e de convivência social; sendo assim, toda sua estrutura é museu e não apenas as salas expositivas: as áreas verdes, os ateliês, os bebedouros e banheiros, as lojas de souvenir, as lanchonetes, os armários de guarda volumes... Absolutamente tudo! E, portanto, quando falamos em ativar o museu como ferramenta pedagógica, falamos em ativar todas essas espacialidades que o compõem. Quando o museu, por exemplo, é utilizado por transeuntes que desejam apenas ir ao banheiro, ele exerce uma função na sociedade tão importante quanto a de receber grupos entusiasmados pelo seu acervo. Reconhecer esse fato pode ser um importante passo para expandir as discussões para além da temática e do acervo, e conectar os museus cada vez mais à contemporaneidade e suas questões sociais. Em carta aberta direcionada à comunidade museal brasileira, o International Council of Museums (ICOM) relembra, em meio à pandemia deste ano, que "desde a Mesa Redonda de Santiago de Chile, há quase 50 anos, os profissionais de museus da América Latina debatem sistemática e proficuamente a função social dos museus"[2]; sendo assim, na contemporaneidade, espera-se, mais do que nunca, um engajamento contundente desses espaços com suas comunidades.
Observadas essas demandas, as possibilidades educativas nos museus de história começam a se materializar em nossa frente para além das obviedades: por que um museu de história que possui vida vegetal em suas dependências não pode ser ferramenta pedagógica das aulas de ciências e biologia? Com disponibilidade espacial, por que não se apropriar do museu para práticas educativas que usam o corpo, assim como nas aulas de educação física? Precisamos olhar para as inúmeras possibilidades interdisciplinares que podem contribuir com a parceria entre educadores das redes de ensino, desmistificando a ideia de que apenas os professores de arte podem propor visitas aos museus.
Interdisciplinaridade e temas transversais
No campo da educação, as discussões sobre interdisciplinaridade chegam no Brasil na década de 1970 e, mais tarde, são incorporadas à Lei de Diretrizes e Bases (LDB - Lei nº 9394/96) e aos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), sendo o autor Hilton Japiassu e a pesquisadora Ivani Fazenda os principais influenciadores de tal acontecimento[3]. Quando falamos em interdisciplinaridade, de modo geral, nos referimos ao diálogo que existe entre os diferentes campos do conhecimento. Dentre muitas definições, destacamos que, para o pensador suíço Jean Piaget, a interdisciplinaridade se apresenta como "intercâmbio mútuo e integração recíproca entre várias ciências"[4], ou seja, uma interação entre diferentes disciplinas, que, segundo o autor, tem por finalidade romper de uma vez por todas com as fronteiras do conhecimento.
Uma vez que entendemos o museu como espaço de educação, agregamos a ele todas as discussões que dizem respeito às metodologias e abordagens educativas. A interdisciplinaridade, assim como dito anteriormente, também deve ser incentivada nos espaços museais e utilizada para criar conexões com a realidade daqueles que o frequentam, transbordando, assim, qualquer limitação no relacionamento com os museus, suas temáticas e seus acervos.
Exemplificando na prática algumas possibilidades que dialogam com o que foi aqui apresentado, podemos recordar da exposição temporária "Migrações à mesa", que esteve em cartaz no Museu da Imigração entre novembro de 2016 e setembro de 2017. Na ocasião, foi elaborado pelo Núcleo Educativo um material pedagógico[5] que apresenta uma variedade de assuntos para serem abordados de maneira interdisciplinar: temporalidades e medidas aparecem no caderno e convidam o visitante a produzir receitas culinárias usando matemática, química e artes visuais. O conteúdo também traz uma proposta de ação, incentivando o público a cuidar de uma horta comunitária instalada nas dependências do museu, onde assuntos como ecologia e educação ambiental podem ser mediados pelos educadores.
Ao passo que o material se estende em sua leitura, também percebemos reflexões sobre diversidade cultural, gênero e afetividade, apontando então que, além de propostas interdisciplinares, temas transversais ao principal assunto do museu eram incentivados nas discussões. A própria curadoria da exposição apresenta possibilidades que atravessam as temáticas da migração, apoiando-se nas coleções de cadernos de receitas, nos depoimentos, nas fotografias e nos objetos culinários, convidando o público a refletir sobre "os impactos da experiência do deslocamento na alimentação"[6].
Projetos extramuros
Para finalizar as reflexões do texto de hoje, ainda gostaríamos de comentar brevemente sobre possibilidades educativas que transbordam não só as temáticas e as coleções de um museu de história, mas sua própria espacialidade. Quando pensamos em ativar os museus como ferramenta pedagógica, não podemos esquecer que esse espaço é parte integrante de uma cidade e da história pessoal daqueles que ali vivem. Nesse sentido, podemos evocar o conceito de "Cidade Educadora"[7], que nasceu em 1990 e propõe a construção de ações capazes de melhorar a qualidade de vida das pessoas.
No Núcleo Educativo do Museu da Imigração, nosso compromisso em discutir a cidade se materializa de forma contundente no projeto Territórios Educativos, realizado junto às escolas da rede pública de ensino. Também aparece em ocasiões comemorativas, como no evento municipal Jornada do Patrimônio, onde desenvolvemos ações em parceria e dialogamos com pontos diferentes da cidade. Já no Museu do Ipiranga, nosso parceiro na formação educativa que inspirou as discussões aqui levantadas, desde o fechamento para reforma desse local, o Serviço de Atividades Educativas trabalha com importantes aspectos aqui comentados, uma vez que o acesso dos públicos à sua espacialidade expositiva encontra-se limitado.
Por fim, percebemos que, enquanto espaços de educação dentro da sociedade, os museus são importantes agentes educativos e podem aproveitar suas estruturas para promover integração na oferta de atividades culturais e corroborar com a promoção de bem estar da comunidade a qual integra. Em nossa próxima e última publicação, comentaremos sobre o uso de materiais pedagógicos na mediação da história e como eles dialogam com importantes transformações sociais.
Referências bibliográficas
[1] Os ideais que evocam a existência de museus ativos e contrários a se tornarem um grande "sarcófago", já tramitavam entre os modernistas nos anos 30. O escritor e crítico de arte Mário de Andrade, por exemplo, expõe em carta enviada à Paulo Duarte a necessidade da criação de "museus à moderna", que fossem "vivos" e promotores de um "ensino ativo". (CHAGAS, Valéria Cristina dos Santos. Infância no museu: investigando a vivência das crianças em espaços expositivos. 2019. 90f. Trabalho de conclusão de curso – Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Paulo, Guarulhos, 2019).
[2] ICOM. 2020. Carta aberta à comunidade museal brasileira. Disponível em: http://www.icom.org.br/wp-content/uploads/2020/05/Carta_aberta_DIM2020-1.pdf. Acesso em 14 de jul. 2020.
[3] TERRADAS, Rodrigo Donizete. A importância da interdisciplinaridade na educação matemática. Revista da Faculdade de Educação, v. 14, n. 16, p. 95-114, 2019.
[4] PIAGET, Jean; DE BARROS, Maria. Problemas gerais da investigação interdisciplinar e mecanismos comuns. 1973.
[5] Núcleo Educativo do Museu da Imigração do Estado de São Paulo. Caderno Educativo - Migrações à mesa. Disponível em: https://bit.ly/MateriaisEducativosMI. Acesso 14 jul. 2020.
[6] Museu da Imigração do Estado de São Paulo. Exposição Migrações à Mesa - Versão para Google Arts & Culture. Disponível em: https://bit.ly/MigracoesaMesa. Acesso 14 jul. 2020.
[7] CIDADES EDUCADORAS. Carta das Cidades Educadoras. Declaração de Barcelona, 1990. Disponível em: https://www.edcities.org/rede-portuguesa/wp-content/uploads/sites/12/2018/09/Carta-das-cidades-educadoras.pdf. Acesso 14 jul. 2020.
Foto da chamada: formação "Possibilidades Educativas em Museus de História" em abril de 2017 / Crédito: José Rosael.