Blog

Compartilhe
Colecionando Histórias Orais: Uma introdução
Em julho de 2020, em meio à pandemia do novo Coronavírus, uma das ações online do Museu da Imigração foi a realização de uma live no Instagram sobre História Oral, em parceria com pesquisadores do Museu do Café. A partir da discussão levantada na ocasião, resolveu-se transformar esse assunto tão rico em uma nova série de publicações.
O Museu da Imigração possui, de acordo com sua última catalogação, um acervo de História Oral com 577 entrevistas de migrantes das mais diversas nacionalidades. Dessas, 480 foram coletadas pela antiga gestão da instituição e 97 pela atual. Mas vamos contextualizar um pouco: o que é, exatamente, História Oral? É toda uma metodologia e processo de trabalho que tem como base o diálogo e a colaboração. Segundo Susana Ribeiro, esse processo leva em consideração experiências, memórias, subjetividades para a produção de conhecimento numa construção conjunta de narrativas. Trata-se de um trabalho específico, que vai além de uma entrevista pontual e que resulta em um entendimento de diversas formas de vivências.[1]
No espaço do Museu, sua utilização passa a ser uma ferramenta que auxilia nessa construção de narrativas e nos ajuda a responder às demandas atuais, ainda que muitas vezes estejamos lidando com eventos do passado – isso tem a ver com a questão da memória ser fabricada no tempo presente, atendendo às suas necessidades, sempre em diálogo. A entrevista de História Oral, ainda, "funda-se em uma tensão irredutível, um abismo entre a verdade do entrevistador e a da pessoa entrevistada (...). Trata-se, sobretudo, da subjetividade das pessoas envolvidas, que desde sempre foi eliminada da construção cientificamente abstrata da História"[2].
A tradição oral é uma forma milenar de transmissão de conhecimento, assim como a escrita e a iconografia, por exemplo. Como construção de conhecimento histórico, podemos considerar que algumas tendências teóricas da segunda metade do século XX deram estofo para o desenvolvimento da História Oral como disciplina acadêmica; entre elas, a História do Cotidiano, a Nova História e chamada História Vista de Baixo. São tendências que ressaltam a importância dos mais diversos atores para uma compreensão histórica mais ampla, bem como a diversidade de fontes para se investigar um determinado assunto; os documentos escritos deixam de ser considerados fontes superiores e a história baseada nos eventos orquestrados por grandes figuras perde força.
Museus, por sua vez, são espaços privilegiados para o exercício dessas formas de reflexão histórica. São ambientes onde se constroem narrativas sobre o passado e o presente a partir de seus diversos acervos. O patrimônio material já é uma categoria bastante consagrada nas coleções; o acervo museológico do Museu da Imigração, por exemplo, conta com mais de 9 mil peças, entre as quais encontram-se itens de mobiliário, indumentária, ferramentas de trabalho, de uso doméstico, fotografias, entre outros. No caso do patrimônio imaterial, a discussão é muito mais recente; sua conceitualização envolve elementos abstratos como receitas, saberes manuais, músicas, rituais, cerimônias, hábitos e costumes. A História Oral transita entre esses dois universos, pois, se por um lado seu conteúdo traz inúmeros elementos intangíveis, esta coleção ocupa um espaço físico em nossas reservas técnicas, ainda que os seus suportes de preservação não sejam considerados patrimônios materiais por si só. Em última instância, cultura material e imaterial são conceitos que podem se entrelaçar, pois, muitas vezes, um objeto carrega a história subjetiva de inúmeros saberes, assim como tais saberes se concretizam a partir da utilização de recursos materiais.
Por sua abstração, o colecionismo de um patrimônio imaterial das migrações possui inúmeros desafios. Por outro lado, é uma forma possível de alcançar uma representatividade muito maior do que a que possuímos em nossa coleção museológica, que é direcionada para uma história das migrações passadas. Esse enfoque é fruto tanto de opções colecionistas da história da instituição quanto de dificuldade físicas de acondicionamento, mas é resultado também da própria natureza dos objetos musealizados. Explicamos: como doar para a coleção de um museu algum objeto que não vemos como representativo de uma experiência passada, mas sim como algo que é utilizado na vida prática do presente? É muito mais estranha essa relação de guarda, em um acervo de museu, de objetos do tempo presente que possuem outros usos e espaços de circulação.
Dessa forma, a História Oral se apresenta como uma ferramenta preciosa para inserirmos em nosso acervo as histórias e os atores do presente. É, também por isso, que a maioria dos projetos atuais se focam no recorte das migrações contemporâneas, ainda que não somente. Todos são desenvolvidos de acordo com os preceitos da metodologia chamada História Oral de Vida; ou seja, possuem um roteiro que permite compreender a experiência migratória do entrevistado de forma total, com o principal objetivo de ser o registro dessa experiência.[3] No entanto, muitos deles apresentam também algum enfoque específico, baseado em questões que consideramos pertinentes e representativas para se entender tais vivências a partir de uma perspectiva coletiva, e não só individual.
Nesta série, vamos apresentar os projetos realizados pela atual gestão do Museu da Imigração e discutir um pouco sobre essas temáticas exploradas nas entrevistas. Alguns spoilers: trataremos de participação política, luta por direitos, feminismo, arte, cultura, entre outros assuntos. Continue nos acompanhando!
Referências bibliográficas
[1] Ribeiro, Suzana Salgado Lopes. História Oral: Panorama histórico e reflexões para o presente. Disponível em: http://www.escoladeformacao.sp.gov.br/portais/Default.aspx?tabid=8692.
[2] Asmann, Aleida. Espaços de Recordação. Formas e transformações da memória cultural. Campinas: Editora Unicamp, 2011.
[3] Meihy, José Carlos Sebe B.; Ribeiro, Susana Salgado. Guia Prático de História Oral. São Paulo: Editora Contexto, 2011.