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Peça a peça: Um álbum de retratos
O Núcleo de Pesquisa do Museu da Imigração vem se debruçando nos últimos meses sobre temáticas relacionas à casa e suas inúmeras formas de abrigo, tanto material quanto simbólico. Esse tema, bastante interessante, torna-se ainda mais precioso quando relacionado à questão das migrações, pois a mudança, o trânsito e a provisoriedade da moradia muitas vezes estão intimamente relacionados ao processo de migrar.
Nesse contexto, passamos a olhar para os inúmeros itens de nosso acervo museológico que são típicos objetos de decoração de casas. Essas peças, ainda que não possuam nenhuma relação material com a segurança do abrigo doméstico, são, muitas vezes, carregadas de memórias, afetos e sensações que fazem com que nós nos sintamos “em casa” mesmo longe de nossas origens. Nas palavras de Eugene Rochaberg-Halton: “Assim, as coisas que nos cercam são inseparáveis de quem somos. Os objetos materiais que usamos não são apenas ferramentas que podemos pegar e descartar conforme nossa conveniência; eles constituem o quadro de experiência que dá ordem aos nossos ‘eus’ – que seriam, de outro modo, disformes”.[1]
Em uma atividade aberta realizada pelo Museu da Imigração em outubro de 2017 (clique aqui para conferir o post sobre esse evento), questionamos pessoas comuns sobre o que elas supostamente levariam consigo caso migrassem. Naquele momento, muitas citaram as fotografias - tanto as impressas em papel quanto aquelas registradas em uma câmara ou telefone celular -, afirmando que possivelmente decorariam o novo espaço em que morariam com elas. Em nosso acervo, também possuímos várias fotografias e alguns porta-retratos. Um item bastante interessante e que reúne essas questões é este curioso álbum de fotografias, cujas origens remontam ao final do século XIX.

Em sua capa, feita de couro, podemos ler a palavra “Album” e observar alguns relevos com motivos florais, já bastantes desgastados. Sua lombada não resistiu ao tempo, mas ainda é possível admirar as laterais douradas do volume, bem como um pedaço de um fecho de metal. Ao olhar seu interior, notamos um formato específico, contendo nichos para dois tipos de fotografias. Estas, 42 no total, estão armazenas separadamente para melhor assegurar sua preservação: tratam-se de dois tipos de fotografia já em desuso atualmente, chamadas “cartes de visites” (menores) e “cartes cabinets” (maiores). Esse formato específico do álbum evidencia que esse tipo de representação fotográfica foi comum e bastante popular.

De acordo com a historiadora Vânia Carneiro de Carvalho, tais modelos eram também conhecidos como “álbuns de sala”: além de guardar fotografias de possíveis familiares e conhecidos, eram verdadeiros objetos de decoração e serviam ainda de estímulo para conversa entre as visitas, sendo, portanto, folheados em várias ocasiões de convívio social. Segundo a autora, esses álbuns foram bastante populares em São Paulo a partir do final do século XIX: “Suas capas acompanhavam estilos e tendências de decoração do mobiliário (...) As fotografias produzidas em estúdio e que apresentavam o retratado mergulhado em um cenário considerado artístico eram tidas como demonstração de bom gosto e serviam para atestar a capacidade de expressão criativa e progresso pessoal do proprietário”[2].

Ao analisar as fotografias presentes no conjunto, notamos a presença de muitos fotógrafos e estúdios de fotografias, principalmente da cidade de São Paulo, do final do século XIX e início do século XX. Algumas delas possuem o nome do estúdio e endereço registrado de forma impressa, na moldura ou verso da imagem junto a arabescos e outros padrões decorativos; outras possuem algumas anotações manuscritas, como lembranças e dedicatórias. Ao realizarmos uma busca por esses profissionais, descobrimos que muitos deles eram migrantes, vindos de outros países, como Portugal, Itália e Alemanha: Elias da Silva, Vicente Pastore, Carlos Hoenen são alguns desses retratistas cujos estúdios desempenharam um importante papel da difusão da fotografia em São Paulo.

Segundo Boris Kossoy, “Embora tenha sido largamente empregada como instrumento de documentação, a principal atividade desenvolvida pelos fotógrafos em todo o mundo foi o retrato. Esse era efetivamente o seu ganha-pão. A expansão da fotografia foi decorrente de uma clientela que se ampliava ininterruptamente, desejosa de representação. Este modelo se repetiu na América Latina e ocorreu igualmente no Brasil”.[3] Em São Paulo, essa prática e seus estabelecimentos – juntamente aos novos restaurantes, cafés, e lojas[4] – iam moldando aos poucos as relações sociais relacionadas à urbanização da cidade e a convivência entre seus moradores, de diversas origens.
Para além das formas de socialização tanto urbana quanto doméstica, este álbum e seus retratos representam um repositório da memória familiar, repleto de potência emocional e afetiva: “As fotografias são, pois, um recurso eminentemente moderno que possibilita a conservação e permanência de uma continuidade visual do passado familiar. Resistindo à aceleração do tempo, elas proporcionam uma orientação para a memória num contexto que tende a ser fragmentário e dispersivo.”[5] Passando os olhos por essas cartes de visites e cartes cabinet, suas dedicatórias manuscritas e seus personagens representados, imaginamos se algum deles seria o dono desse álbum, do qual não temos informações sobre a doação. Sem nenhum indício que nos leve para uma conclusão a esse respeito, nos resta olhar para o couro desgastado, os relevos descascados e sua lombada já perdida e inferir que ele foi revisitado muitas vezes por aqueles a quem pertenceu. No entanto, as marcas do tempo e sua atual fragilidade não o impediram de cumprir sua função; os retratos permanecem, ainda hoje, muito bem conservados.
[1] Tradução nossa. No original: “Thus the things that surround us are inseparable from who we are. The material objects we use are not just tools we can pick up and discard as our convenience; they constitute the framework of experience that gives order to our otherwise shapeless selves”. CSIKSZENTMIHALYI, Mihaly; ROCHBERG-HALTON, Eugene. The meaning of things. Domestic symbols and the self. Cambridge: Cambrigde University Press, 1981, p.32.
[2] CARVALHO, Vânia Carneiro. Gênero e artefato. O sistema doméstico na perspectiva da cultura material – São Paulo, 1870-1920. São Paulo: Edusp, 2008, p.91.
[3] KOSSOY, Boris. Dicionário Histórico-Fotográfico Brasileiro. Fotógrafos e ofício da fotografia no Brasil (1833-1910). São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2002, p.24.
[4] Clique aqui para ver outro texto do Blog do CPPR que aborda um catálogo da Casa Allemã, famosa loja paulistana que surge nesse mesmo contexto.
[5] SCHAPOCHNIK, Nelson. Cartões-postais, álbuns de família e ícones da intimidade. In: NOVAIS, Fernando; SEVCENKO, Nicolau (Orgs.). História da Vida Privada no Brasil, v.3 – República: da Belle Époque à Era do Rádio. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.